quinta-feira, 14 de junho de 2012

Mentira estratégica



Da esquerda para a direita, Murilo Mendes, Anibal Machado, Jaime Ovalle, Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt

Naqueles tempos em que Ipanema era uma quase província, a praia uma imensa faixa de areia, iluminada à noite por postes americanos, os prédios baixinhos, o trânsito de poucos carros e toda a gente andava sem medos, a casa de número 487 na Visconde Pirajá, com suas janelas verdes e suas portas abertas, era ponto de encontro marcado dos mais diversos artistas.

Seu proprietário era o escritor Aníbal Machado, seis filhas, 13 livros e centenas de amigos, um homem de rara humanidade e autor das mais belas e poéticas páginas da literatura nacional.

É lembrado até hoje por sua capacidade criativa e de agregar e manter à sua volta todos os talentos possíveis que marcaram e surgiram naquela época.

Foi essa Ipanema mágica que acolhia as famosas “domingueiras do Aníbal”, em que todos eram bem vindos e discutia-se Freud e Kafka com a mesma energia com que se dançava foxtrote e boogie woogie.

Nesses saraus, era possível encontrar Lúcio Cardoso, Otávio de Faria, Oswaldo Goeldi, Marcelo Grassman, Paulo César Saraceni, Paulo Autran, Tônia Carrero, Thiago de Mello, Rubem Braga, Fernando Sabino, Jaime Ovalle, Millôr Fernandes, Paulo Mendes Campos, Ivan Junqueira, Carlos Heitor Cony, Leandro Konder, Barbosa Lima Sobrinho, Eneida, Otto Maria Carpeaux, Jorge Amado, José Olympio, o então estudante Ivo Pitanguy, a bailarina Tatiana Leskova, pintores, escultores, arquitetos, atores, poetas, cronistas e talvez Deus pessoalmente, de papo ferrado com o capeta. Porque a casa rescendia concórdia, amizade, trégua e paixões várias.

Evidentemente, neste bando misturado apareciam indesejáveis e tinha sempre um que particularmente desequilibrava a agitada quietude da casa com porres avassaladores. Anibal o suportava com a mais santa das paciências, não reclamava nunca.

Um dia, o inconveniente aparece numa manhã de segunda-feira na casa do doce escritor antropofágico. Estava sóbrio e preocupado:

– Anibal – disse ele. “Me contaram que houve algum problema comigo aqui, no sábado: que eu tomei um porre federal e fiz alguma coisa errada. Espero não ter te ofendido.”

Anibal, a voz calma, moderada, pretendeu consolar o visitante:

– Não, meu amigo – a voz esticada – de jeito nenhum. Exagero das pessoas. Você apenas evacuou no meio da sala.

Era mentira do escritor. Mentira estratégica que afastou o inoportuno para sempre.

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