quarta-feira, 20 de junho de 2012

Borderô


Zeca Pagodinho e Jovelina Pérola Negra estavam fazendo uma apresentação musical em um clube de Cascadura e ela não tinha dinheiro para voltar pra casa.

Alguém sugeriu que a cantora pegasse uma grana adiantada no caixa do clube para pagar o táxi e Jovelina não se fez de rogada.

O rapaz da bilheteria lhe deu a grana pedida e avisou:

– Olhe, dona Jovelina, eu estou lhe dando esse valor na maior confiança, mas depois vou descontar tudinho no seu borderô...

A cantora subiu nas tamancas:

– Rapaz, se oriente e me respeite! Se nem meu marido bolinou no meu borderô quando ainda estava vivo, não vai ser você, um zé ruela que estou vendo pela primeira vez, que vai bolinar agora! Eu sou viúva, mas sou direita, seu cabra safado!

A partir daí, a cantora começou a xingar o bilheteiro de tudo quanto é palavrão.

Foi um cu de touro explicar pra mulata que borderô não era sinônimo de buzanfã.

Coisa de milico


No início da carreira, o embaixador Maury Gurgel Valente, então casado com a escritora Clarice Lispector, servia junto à representação brasileira em Paris.

Numa recepção que promoveu nos salões da Embaixada, Maury convidou, entre outras pessoas, o escultor Alfredo Ceschiatti que estava de passagem pela cidade, e um major do Exército brasileiro que visitava a França em missão bélico-comercial, ou seja, comprar máquinas de extermínio.

Meio à festa povoada de ilustres personalidades, o major aproximou-se de Ceschiatti e sabendo-o escultor, perguntou-lhe:

– O senhor prefere mulheres brancas ou pretas como modelos?

Ceschiatti esquivou-se como pôde. Afinal, pouco importava a cor do modelo.

– Pois eu – declarou o major, enfático, num tom de voz que o fez ouvido por todos – não dispenso uma boa negra!

Percebendo o constrangimento que semeara em torno, corrigiu, diligente:

– Com exceção, naturalmente, das senhoras aqui presentes.

Prato do dia


Di Cavalcanti para a gerente de um rendez-vous (como se dizia) em Paris:

– O que temos para hoje?

Madame informou:

– Temos uma úmbria glabra, uma coreana de treze anos e um grumete norueguês virgem.

O Di, com ar de enfado:

– E em matéria de peixe?

Boca murcha


Após cruel desavença com um feroz desafeto de ocasião, na cidade de São Paulo, o ator Paulo César Pereio teve alguns dentes abalados – a maioria entre os mordedores frontais.

Faminto e com numerário deficiente, foi em busca de um restaurante de meia estrela que lhe mitigasse o apetite.

Encontrou-o no “Salada Paulista”, uma casa de pasto popularíssima pela qualidade e pelo preço da comida, desprezíveis ambos.

Pereio aproximou-se do caixa e, como era muito conhecido na cidade e querendo esconder sua qualidade de pré-desdentado, para livrar a imagem cochichou-lhe o comando, a mão tampando a boca:

– Me vê aí um prato-feito, companheiro. Pede pra caprichar no molho e diminuir a carne. Sabe, estou com uns dentes meio frouxos.

O caixa berrou para a cozinha no outro lado da casa apinhada:

– Ô Bixiga! Solta aí um PF pro ruço aqui! Carrega no molho que o freguês é só gengiva!

O azarão


O produtor de televisão Cícero Carvalho encontra na rua um amigo animadíssimo, alvissareiro:

– Cícero, meu velho, não tem erro! Chegou a hora de você lavar a burra! Amanhã, domingo, você vai no Jóquei e põe toda a grana que tiver em casa no cavalo Foge Daí, no quarto páreo. É mutreta dos caras. Um primo meu, que é jóquei, faz parte da armação. O cavalo é o maior azarão do mundo e vai pagar uma nota preta pra quem apostar nele. Vai lá, que com a grana que você tem em casa, tu podes quebrar a banca!

O Cícero, que odiava mexer com corrida de cavalo pois conhecia a fama do jogo, resolve ir ao hipódromo, atraído pelos zeros anunciados.

Esperou com paciência o quarto páreo e foi jogar. Consultou o programa para saber o número do tal animal eleito para a roubalheira e não encontrou. Procurou nos outros páreos. Nenhum Foge Daí. Fugiu dali.

Encontrou o amigo barbadeiro na segunda-feira, contentíssimo da vida, aos berros:

– Matei a pau! Matei a pau! Lavei brabo mesmo! E você? Quanto ganhou?

– Nem um puto. Você está é ficando maluco, cara. Não tinha nenhum cavalo com aquele nome correndo no domingo.

O ganhador meteu a mão no bolso, tirou o programa da véspera, exibiu-o triunfante, apontando no nome do cavalo ladrão:

– Não correu não, é? Não correu não, é? Você é analfabeto? Olha aqui! Quarto páreo!

O nome do cavalo era Foggy Day.

A cartomante


Elevador. Entram duas mulheres, uma jovem, outra idosa. A jovem é a futura escritora Clarice Lispector, nascida na pequena aldeia de Tchetchenillk, na Ucrânia.

Diz a idosa:

– Minha filha, me faça o favor de apertar o botão do sexto andar. Estou sem óculos, não enxergo quase nada.

– Com prazer – respondeu Clarice. “Mas como a senhora adivinhou que eu falo russo?”.

– Eu não adivinhei, minha filha. Eu não falo outra língua.

O aleijadinho


José Lewgoy, o ator oriundo de Veranópolis, destruiu seu carro e quase se destruiu numa batida na avenida Niemeyer.

Do acidente restou uma pequena sequela na perna, o que o obrigava, um pouco também por charme, a se apoiar física e moralmente numa bengala elegantíssima, de castão de mogno lavrado.

Numa fila de postulantes a um táxi no aeroporto, foi agraciado com um obséquio do PM encarregado do embarque dos passageiros.

Berrou o soldado, apontando para ele:

– Deixem primeiro passar esse aleijadinho aí!

Boemia


Ciro Monteiro, o saudoso cantor, foi visitar o amigo Lúcio Schneider e chegou alegríssimo, festivo, eufórico, alvissareiro:

– Mas, ô Schneider! Eu não sabia! O Rio de Janeiro é lindo! Botafogo, a Glória, o Flamengo! Que lugares mais deslumbrantes!

O Lúcio, achando aquela explosão esquisitíssima:

– Você ficou doido, Formigão? Tem uma porrada de anos que você passa por esses lugares e nunca notou?

– Mas é que eu só passava de noite. Hoje passei de dia, pela primeira vez...

A vingança


Nos tempos magérrimos, na pré-história da carreira luminosa feita com a ajuda das “mulatas que não estão no mapa”, Oswaldo Sargentelli morava num apartamento desses catre-penico-bico-de-gás.

O contrato de locação era meio de boca e o senhorio, aproveitando-se disso, aumentava o aluguel todo mês, sem que o inquilino pudesse fazer algo para evitar a exploração.

Mas um dia pôde. Sargentelli ficou na calçada em frente ao prédio olhando interessado um ponto qualquer da fachada. Foi juntando gente.

– O que houve? – perguntou um popular ao Sargento.

– Não está vendo? Olha lá, bem naquele canto. Uma fissura. E o prédio está meio inclinado, reparou?

– É mesmo, rapaz! Esse troço pode cair a qualquer hora!

Meia hora depois chega a polícia. Inteirada do perigo, isola o quarteirão. Chamam a Defesa Civil, os engenheiros do Estado, o Corpo de Bombeiros.

Comprovam, mesmo sem maior investigação, que o prédio corre sério risco de desabar e deve ser evacuado e interditado imediatamente.

“Prédio pode ruir a qualquer momento”, diz a manchete do jornal O Dia. As primeiras páginas dos outros jornais gritavam mais ou menos o mesmo.

Famílias ao desabrigo, reunião de emergência com o secretário de Obras, que garante não haver perigo iminente.

– Os engenheiros estão estudando o assunto com o maior cuidado! – disse a autoridade.

– Isso é um descalabro! Um desaforo! – berrava Sargentelli. “E os preços extorsivos dos aluguéis que pagamos? Só funciona um elevador, imagine! Vou processar o condomínio!”.

E se mudou do cabeça-de-porco, deixando o caos instaurado.

Brazucas em Nova York


O ator Agildo Ribeiro estava andando de táxi em Nova York. Os motoristas de praça de lá são obrigados a afixar no painel retrato, nome e número de inscrição no departamento de trânsito local.

Agildo olhou a foto do homem e teve de conferir com o original para se certificar.

O sujeito usava aqueles bigodes de Salvador Dalí – longos, pontiagudos e quebrados para cima como dois chifres finos de touro miura.

Em suma, um cara estranho e que, ainda por cima, ouvia Vivaldi solenemente no toca-fitas do carro.

– Isso é coisa de viado! – comentou com o companheiro de viagem.

– Só pode ser! – concordou o outro. “Esse cara, além de esquisitísão, também ouve música de boiola. Com certeza deve gostar de agasalhar croquete...”.

Num dado momento, o carro desembocou numa praça – a Washington Square – e o ex-parceiro do recalcitrante Topo Gigio fez uma observação:

– Parece a Praça da República, em São Paulo.

O motorista abaixou o volume das “Quatro Estações”, de Vivaldi:

– Absolutamente! – disse em português do Bixiga. “Esta praça é muito mais bonita. Até quando neva”.

E voltou a aumentar a música com igual solenidade.

Coronel Feliciano


Princesa Isabel, cidade do alto sertão da Paraíba, terra onde se aquartelava a tropa cangaceira do temido Zé Pereira, berço da saga biográfica do coronel Feliciano, homem de muita fé, mas só em si mesmo. Homem de truculência e bizarrice. Homem para homem nenhum botar defeito mode continuar vivo.

Homem que só saiu de Princesa Isabel uma única vez para visitar a Feira de Caruaru, de onde partiu para sempre uma hora depois de arribaldo voltando pro lombo do trem. “Chega de tanta grandeza”, ele disse.

Homem que não acreditava que a Terra fosse redonda e se mexia. “Coisa de padre pra contar história. Se fosse redonda e se mexesse ia ter indecência. Os home tudo por cima das muié”.

Homem que odiava padre e santo e que negava esmola a cego. “Vá pedir dinheiro pra quem te cegou, peste!”.

Homem que negava a existência da Arca de Noé com uma argumentação imbatível:

– Uma vez teve um circo aqui. O elefante comeu sozinho umas cinquenta arrobas de resto de cana. Imagine um barco cheio de bicho por quarenta dias e quarenta noites! Onde o velho ia guardar a comida dos animais?

E concluía:

– Só de piolho conheço umas dez raças diferentes e uma vez quis pegar um casal de rolinhas, só peguei macho.

A mulher do coronel Feliciano, ao contrário do marido, era beata de ralar joelho, vivia na missa, vivia rezando.

Na grande seca de 1936, toda a população se reuniu numa procissão para pedir água ao céu abrasador.

O coronel pediu a seu modo: pegou uma imagem de São Judas Tadeu – um “calunga”, como ele chamava –, amarrou no talo de um rojão – na “taboca”, como tratam o rabo de foguete por lá – e disparou a peça de artilharia que se espatifou, junto com a imagem, a uns cem metros de altura.

Coincidência ou milagre, no dia seguinte desabou o maior pé-d’água do sertão. Explicação prática do coronel:

– Uai! E não era pra chover, cabra? Já imaginou um pipoco do pé de ouvido a duzentos metros de altura! Tinha mais é que tomar providência!

E não parou mais de chover, o açude estava por estourar. O coronel encheu um saco de santo, foi no açude e, segundo ele, “pipinou os calungas de metro em metro” e avisou pras santificadas imagens:

– Agora é com vocês! Se estourar desce tudo por água abaixo. E vocês descem junto.

Dia seguinte parou de chover.

A porca


De todos os sambistas contrários à prática do sexo oral, o que mais alardeava seu ponto de vista era o Mestre Marçal. Quando perguntado sobre o assunto, ele reagia energicamente.

– Que é isso, meu sobrinho, eu sou responsabilidade.

Uma vez, um músico que ensaiava com ele falou só pra provocar.

– Eu faço sexo oral e não acho nada demais.

Marçal reagiu com uma tirada genial:

– Então tá bom. Quando você for na minha casa, vai beber água na mão.

O rapaz não desistiu:

– Mas e se a mulher quiser fazer sexo oral, você vai impedir?

Marçal balançou a cabeça e respondeu:

– Aí tudo bem, a porca é ela.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Mentira estratégica



Da esquerda para a direita, Murilo Mendes, Anibal Machado, Jaime Ovalle, Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt

Naqueles tempos em que Ipanema era uma quase província, a praia uma imensa faixa de areia, iluminada à noite por postes americanos, os prédios baixinhos, o trânsito de poucos carros e toda a gente andava sem medos, a casa de número 487 na Visconde Pirajá, com suas janelas verdes e suas portas abertas, era ponto de encontro marcado dos mais diversos artistas.

Seu proprietário era o escritor Aníbal Machado, seis filhas, 13 livros e centenas de amigos, um homem de rara humanidade e autor das mais belas e poéticas páginas da literatura nacional.

É lembrado até hoje por sua capacidade criativa e de agregar e manter à sua volta todos os talentos possíveis que marcaram e surgiram naquela época.

Foi essa Ipanema mágica que acolhia as famosas “domingueiras do Aníbal”, em que todos eram bem vindos e discutia-se Freud e Kafka com a mesma energia com que se dançava foxtrote e boogie woogie.

Nesses saraus, era possível encontrar Lúcio Cardoso, Otávio de Faria, Oswaldo Goeldi, Marcelo Grassman, Paulo César Saraceni, Paulo Autran, Tônia Carrero, Thiago de Mello, Rubem Braga, Fernando Sabino, Jaime Ovalle, Millôr Fernandes, Paulo Mendes Campos, Ivan Junqueira, Carlos Heitor Cony, Leandro Konder, Barbosa Lima Sobrinho, Eneida, Otto Maria Carpeaux, Jorge Amado, José Olympio, o então estudante Ivo Pitanguy, a bailarina Tatiana Leskova, pintores, escultores, arquitetos, atores, poetas, cronistas e talvez Deus pessoalmente, de papo ferrado com o capeta. Porque a casa rescendia concórdia, amizade, trégua e paixões várias.

Evidentemente, neste bando misturado apareciam indesejáveis e tinha sempre um que particularmente desequilibrava a agitada quietude da casa com porres avassaladores. Anibal o suportava com a mais santa das paciências, não reclamava nunca.

Um dia, o inconveniente aparece numa manhã de segunda-feira na casa do doce escritor antropofágico. Estava sóbrio e preocupado:

– Anibal – disse ele. “Me contaram que houve algum problema comigo aqui, no sábado: que eu tomei um porre federal e fiz alguma coisa errada. Espero não ter te ofendido.”

Anibal, a voz calma, moderada, pretendeu consolar o visitante:

– Não, meu amigo – a voz esticada – de jeito nenhum. Exagero das pessoas. Você apenas evacuou no meio da sala.

Era mentira do escritor. Mentira estratégica que afastou o inoportuno para sempre.

Rosa dos Ventos



Amaro Machado, arquiteto, navegante e piloto de avião, comprou um veleiro, modelo Arpege, e estava com problema de nome, até que decidiu:

– Vai se chamar Rosa dos Ventos.

O também arquiteto Marcos de Vasconcellos ponderou:

– Tá ficando maluco, Machadão? Esse nome é tão óbvio que devem ter pelo Brasil afora milhares de Rosas dos Ventos.

Ele teimou:

– Pois vou botar Rosa dos Ventos.

– Pirou o cabeção, porra, pirou o cabeção? A Capitania dos Portos vai até rir na sua cara! – insistiu Marcos de Vasconcellos.

– Não quero nem saber. Vai ser Rosa dos Ventos.

E foi à Capitania registrar o barco. Quando voltou, a cara seriíssima, trazia um embrulho. Eram as letras de aço para fixar na popa. Ficou Rosa dos Ventos mesmo.

Todo mundo que pensava no nome, raciocinava feito Marcos Vasconcellos e desistia.

Gaiatice



Doum Romão, o músico. Ou Dom Um Romão, para os menos íntimos.

Pele cor-de-tâmara, cara de árabe, cavanhaque, cabelo cacheado, cara de malandro, sorriso eterno: tudo isso encimando um corpo seco e musculoso, moldado pelos nervos de baterista.

Na juventude, era um cabra folgado, metido a capoeira, encarava qualquer briga de rua.

Carioca da Zona Norte, com livre trânsito na Zona Sul, foi um dos inventores do Beco das Garrafas.

Uma ocasião, o baterista descia com outros companheiros do Brasil 66 – antecessor do Brasil 88, de Sérgio Mendes, onde ele tocava – pelo elevador do Hotel Hilton, de Tóquio.

Num dos andares entra um japonês baixinho, metido num quimono de seda cinzenta, ambos – japonês e roupa – seriíssimos.

Sabe como é brasileiro em bando fora do Brasil: parte direto para o deboche.

O Doum não deixou por menos, começou a rir e a falar em português:

– Olha só o japona, uns e outros! Parece madame nissei de São Paulo, endomingada para Festival do Tomate Shintô. É do tipo que se desce corrimão pelada faz brrrr...

A brincadeira foi por aí, durou até o térreo.

O japonês saiu do elevador, deu uns quatro passos, voltou-se, plantou-se nas duas pernas, cerrou os punhos, olhou Doum no fundo da retina e perguntou, glacial:

Are you looking for trouble?

Doum, amarelo-marinho, num inglês aos farrapos, só faltou ajoelhar.

Oito ou Oitocentos



O jornalista Sérgio Noronha entrevistava candidatos ao programa “Oito ou Oitocentos”, da TV Globo.

Como se sabe, tratava-se de um jogo de perguntas e respostas sobre um determinado assunto, valendo dinheiro. Se o arguido acertasse todas, levava uma boa grana pra casa.

Para evitar que se apresentassem pessoas que só queriam aparecer no vídeo por alguns instantes e ganhar seus 15 segundos de fama, fazia-se uma seleção prévia. Sérgio ficou encarregado de entrevistar os candidatos e tomar notas.

Um dia, se apresenta um sujeito bem apessoado, trajando paletó e gravata.

– Nome?

– Fulano de tal.

– Vai responder sobre que assunto?

– Tudo.

– Como, tudo?

O candidato, impassível:

– Exatamente. Tudo! Das alturas do céu, tudo que se passa sobre a Terra, às profundezas do mar.

E arrematou, para desespero do jornalista:

– Quem está contra mim está contra Deus!

Canto lírico



Um empregado do escritório do arquiteto Sergio Bernardes – um crioulão de dois metros – pediu as contas: ia se dedicar ao bel canto, ao canto lírico. Como o arquiteto adorava uma molecagem, pediu ao demissionário:

– Dá aí um dó de peito.

O cara: uaaá, deu lá o dó de peito.

Bernardes quis mais:

– Dá outro aí. Estou notando uma coisa qualquer...

O barítono, mesmo sentado, estufou o peito e mandou ver: uuuuuuaaaaá!

Bernardes então pediu que ele se levantasse, cobriu a palhinha do assento da cadeira com uma revista e disse:

– Agora senta outra vez e repete o dó de peito.

O crioulo, mesmo cismado, obedeceu: uuuuuuuaaaaá!

Bernardes:

– Era isso! Melhorou muito! Você está com um pequeno escapamento no baixo ventre. Use um esparadrapo no ânus.

Dias depois, o engenheiro Fernando Sagreto encontrou o tal cantor do Bernardes declarando ao arquiteto:

– O meu professor mandou dizer pro senhor que o senhor entende muito mas é de arquitetura. De canto, o senhor não entende porra nenhuma.

Responsável pelo projeto arquitetônico de um dos cartões postais da Paraíba, o Tropical Hotel Tambaú, Sergio Bernardes faleceu no dia 15 de junho de 2002.

O grande tropeiro



Como toda história fantástica, a vida do mineiro Joaquim Rolla (1899-1972) começa de maneira improvável, tendo em vista os feitos de projeção internacional que lhe deram fama.

Desde a adolescência, em São Domingos do Prata (MG), demonstrou claramente tino para acumular dinheiro: enterrou moedas para “encontrá-las” depois e vendeu gasosa de abacaxi aos imigrantes que não toleravam a cachaça.

Já tropeiro, descobriu o poder multiplicador da jogatina em rodas de truco e, assim, seu destino foi selado.

Está tudo contado por João Perdigão, seu sobrinho-bisneto, e Euler Corradi no recém-lançado livro “O rei da roleta”.

Joaquim é um dos principais nomes da história do jogo no Brasil.

Num lance de cartas (literalmente), tornou-se dono do lendário Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, o mais famoso do país e por onde passaram Carmen Miranda, Orson Welles, a alta sociedade, políticos e muito dinheiro.

Não bastasse, construiu o Quitandinha (aberto também como cassino, em Petrópolis), o Pavilhão de São Cristóvão (no Rio) e o Edifício JK (em Belo Horizonte), um dos maiores de Minas Gerais.

E ainda fez e administrou mais cassinos – incluindo o da Pampulha –, hotéis e estradas, além de ter fundado um jornal, a Folha da Noite Mineira.

Pelos shows e bancas de aposta das casas de Joaquim passou não apenas “gente famosa”, mas políticos, empresários e figuras que influenciavam diretamente o destino da nação.

Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Assis Chateaubriand, Roberto Marinho e o norte-americano Percival Farquhar (um dos principais investidores a atuar no Brasil no início do século 20) são apenas alguns exemplos.

Mas nem só de grandes empreendimentos vitoriosos é feita a carreira de Joaquim.

Sempre próximo ao poder, ele sentiu na pele o que significa contar com a simpatia e apoio de políticos.

Por um lado, recebeu das mãos de JK (assíduo frequentador dos cassinos cariocas) a concessão para explorar o Cassino da Pampulha (atual Museu de Arte).

Por outro, teve o Pavilhão São Cristóvão desapropriado pelo então governador da Guanabara Carlos Lacerda, que anulou os direitos de concessão conferidos a Joaquim por JK, seu adversário político.

Mais do que todo o dinheiro que Joaquim movimentou com seus negócios, o que mais impressiona nessa história é a capacidade que o empresário teve de se levantar depois de cada queda, principalmente depois da proibição ao jogo em todo o Brasil, feita em 1º de maio de 1946, pelo presidente Eurico Gaspar Dutra.

Os autores do livro estimam que, na época, havia 37 mil trabalhadores na indústria do jogo no país, 7 mil dos quais subordinados ao empresário mineiro.

O fato foi, talvez, o mais duro golpe para os negócios de Joaquim.


Inaugurado em 1944, o gigantesco Quitandinha teve, portanto, apenas cerca de dois anos para funcionar como cassino.

O investimento feito lá, de US$ 10 milhões em 1941, foi o motivo de ele não ter ficado pobre.

O terreno foi comprado por ele como uma fazenda afastada, cheia de pântanos.

Urbanizou tudo e, quando houve a proibição do jogo, ficou com uma dívida trabalhista enorme.

Vendendo os lotes, que ficaram valorizados, pagou tudo o que devia e ainda conseguiu fazer outros investimentos.

Foi quando migrou para a área imobiliária, com as construções do edifício JK, do Pavilhão São Cristóvão e do Hotel Venda Nova Paquequer.

Num almoço com o empresário, o urbanista Guilherme Vasconcellos comentou sobre a sua extraordinária ascensão, de tropeiro a miliardário.

Joaquim Rolla, com a fala amineirada que o acompanhou até o fim da vida, garantiu:

– Ganhar dinheiro foi a coisa mais fácil da vida. Difícil mesmo era trazer boi, burro e porco a pé, de Minas Gerais pro Rio de Janeiro, e fazer tudo chegar junto. Essa ninguém faz.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Tabagismo



Agosto de 1972. O médico Sergio Carneiro percorria os corredores de um dos hospitais onde trabalhava, numa visita de rotina aos seus doentes.

Inadvertidamente, entrou num quarto que não era de nenhum cliente seu.

Um homem, um senhor, arfava sobre a cama, parte do rosto coberto pela máscara de oxigênio, a armação metálica ao lado, sustentando um frasco de soro, ministrava-lhe o líquido na veia.

Ao pé do leito do paciente, um rapaz velava, tristonho e preocupado.

Sergio, vendo-o sozinho, tentou um gesto de solidariedade:

– Então, como vão as coisas?

– Mal, muito mal. É meu pai. Enfisema. Excesso de cigarro. Começou a fumar com 14 anos, nunca parou, deu nisso...

– Pois olha! – disse o Sergio. “Desde que parei de fumar não consigo nem transar com mulher que fuma. Não agüento nem o cheiro.”

O enfisemado, com um gesto lento, difícil, afastou um pouco a máscara, liberando a boca e declarou, a voz macerada, roufenha, quase sem fôlego:

– Então, o senhor deve estar comendo muito pouca gente...

Dito isso, teve um estertor e deu o último suspiro.

The book is on the table



Dezembro de 1977. Nova York. Ziraldo e sua mulher, Wilma, num hotel grã-finíssimo. De manhã cedo, Ziraldo, devidamente munido do cardápio, foi pedindo seu breakfast à pressurosa telefonista da copa:

– Two cups of tea with lemon, coffe, milk, two three minutes eggs, orange juice, bread, butter, toasts, jelly…

Findo o rol, Ziraldo ouviu a moça afirmar:

– Yes, sir, I remember

Ziraldo comentou com Wilma, desligando o telefone:

– Tudo bem. Ela disse que se lembra de tudo que eu disse.

Passaram-se vinte minutos, meia hora e nada do breakfast. Quarenta e cinco minutos. Ziraldo insiste: e fala em “inglês” com a mesma moça da copa.

– O breakfast está muito atrasado. Já pedi há quase uma hora.

– Yes, sir – disse a moça com convicção. “I remember!”

Ziraldo desligou satisfeito:

– É, ela não esqueceu.

Uma hora e meia e nada da encomenda. Wilma se adiantou:

– Espera, Ziraldo. Deixa que eu falo.

Ligou. Falou com a moça. Desligou, satisfeita. O Ziraldo:

– Afinal o que houve? Ela continuou dizendo que se lembra?

Wilma, com paciência:

– Ela não dizia “I remember”, Ziraldo. Ela queria o “room number”, o número do quarto.

Mentecapto



Anos 60. Havia um jornalista no Diário de Pernambuco, um certo Irineu de Souza, que só chegou a repórter por interferência de um deputado seu amigo, pois era muito burro.

Certa vez, chegou a Recife uma jornalista belga de certa importância e mandaram o Irineu entrevistá-la. 

Dia seguinte, escapou o seguinte título na matéria sobre a moça: “Jornalista belgicana visita o Recife”

Em vários pontos do edifício do jornal afixaram os seguintes versinhos:

Jornalista belgicana
No mundo nunca se viu,
Irineu, burro e sacana,
Vá pra puta que o pariu!

O tal Irineu de Souza pediu o boné no mesmo dia

Dedo duro



Dizem que essa história aconteceu com o jornalista recifense Edmundo Celso, um destacado quadro comunista do velho Partidão, apesar de circular em Manaus uma história semelhante, atribuída ao também jornalista Farias de Carvalho, outro destacado quadro do Partidão.

Vamos à versão dos pernambucanos:

Nos anos 60, quando a repressão do governo recrudesceu, o Coronel Alvino, chefe das brigadas anti-subversivas pernambucanas, espécie de extintas volantes sertanejas, prendeu todos os companheiros do PCB com toda ferocidade.

Menos Edmundo Celso, que ficou no maior desapontamento com a discriminação.

Rejeitado e frustradíssimo, deu um telefonema anônimo para o coronel denunciando-se com voz sussurrada:

– Aqui quem fala é um patriota. Eu quero lhe avisar que o pior subversivo de todos está solto, o mais perigoso, o mais cruel e sanguinário. Chama-se Edmundo Celso.

O coronel:

– O quê? O Edmundo Celso? Aquilo é um afofa-bosta! Não passa disso, um afofa-bosta!

Edmundo Celso, desnorteado, denunciou-se para valer:

– Afofa-bosta é a puta que pariu! Ouviu, seu filho duma égua? É a tua mãe!

Foi preso no mesmo dia. Por desacato a autoridade.

Vingança



Essa história se passou com uma conhecida atriz da rede Globo, cujo nome vou omitir para evitar processos indesejáveis.

Sentada no bidê, o esguicho do chuveirinho aberto inteiro, furiosa com o rompimento do noivado por absoluta culpa sua, gritava histérica:

– Bebe, desgraçada, bebe! Já que tu não podes mais comer, bebe!

Assim é se lhe parece



O socialite Celmar Padilha discutia com o maître a qualidade do faisão que lhe foi servido e que ele, gastrônomo e grande conhecedor dos segredos e mistérios de tal caça, não aprovou.

Na mesa contígua, o escritor Carlinhos de Oliveira comentou com desdém:

– Faisão para mim é uma galinha caipira que tomou banho de loja e herdou um título do Country Club...

Pindaíba



O jornalista Paulo Branco, recém-chegado de sua terra natal, Vassouras (MG), anos idos, para se estabelecer de vez no Rio de Janeiro, conheceu todas as intempéries que assolam um iniciante e, acima de todas elas, a mais letal: a pindaíba, a quebradeira, a falta total de numerário.

Logo que chegou, escolheu para abastecer-se um restaurante bem modesto e, consultando o cardápio pela lista da direita, a do preço, comandou um caldo verde.

O garçom berrou para a cozinha:

– Salta um atestado!

Curioso, Paulo quis saber a razão daquele “atestado”.

– De pobreza! – esclareceu o homem.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Sete casos de Ênio Silveira


Em 11 de janeiro de 1996, o Brasil perdia uma de seus estudiosos mais influentes: Ênio Silveira. Nascido em 18 de novembro de 1925 e formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), Silveira foi um importante editor brasileiro.

Iniciou sua carreira na Editora Civilização Brasileira, assumindo a direção da editora em 1948, criando novas formas ao material o que levou a um grande crescimento no mercado.

Lançou a revista Civilização Brasileira, marco do pensamento político, cultural e de resistência à ditadura militar. 

Entre os anos de 1964 a 1969, foi preso sete vezes por filiar-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas continuou sua carreira publicando temas políticos e sociais de pensadores marxistas e também de oposição à ditadura no Brasil.

Por conta de suas crenças políticas, Ênio editava livros que raramente chegavam ao Brasil, obras vistas como polêmicas aos olhos de parte da sociedade brasileira.

Na seção “Cadernos do Povo Brasileiro”, escrevia sobre temas da política nacional, de intervenção nas lutas sociais, como a Reforma Agrária, por exemplo.


Quem comprava a coleção ainda recebia um caderninho de poemas chamado “Violão de Rua”, em que publicava obras de importantes artistas do Brasil, como o famoso poema de Vinícius de Morais, o “Operário em Construção”.

O sociólogo foi uma das personalidades mais influentes dos meios editoriais do Brasil durante décadas, principalmente durante a ditadura militar. 

À época do regime militar, chegou a editar um livro por dia e editou cerca de 6 mil livros ao longo de sua vida.

Por todo o seu trabalho com a editora Civilização Brasileira tornou-se memorável e uma marco na sociedade, encantando até o filósofo Jean-Paul Sartre.

Sua morte foi uma grande perda para a cultura nacional, sobretudo por sua defesa à democracia, à cultura brasileira e a intelectualidade tipicamente brasileira.

A Editora Bertrand Brasil publicou a biografia de Ênio Silveira, escrita por Moacyr Félix.

Vale a pena conhecer as ideias e o trabalho de um dos maiores sociólogos brasileiros.



Alguns casos de Ênio Silveira, contados com aquela verve que só ele tinha, foram recolhidos numa longa entrevista para uma série da Edusp, “Editando o editor”. 

Saiu um pequeno volume que acabou sendo uma raridade bibliográfica. 

É o que trago hoje para os leitores do CANDIRU, resumindo um pouco.

1

Com 18 anos, Ênio procura emprego em São Paulo e quer ser apresentado ao escritor-editor Monteiro Lobato. Uma amiga se oferece e o convoca para seu apartamento, onde terá lugar o encontro. Ele entra e ela o chama lá de dentro – do banheiro. Estava esfregando vigorosamente Lobato na banheira, com uma escova. Ênio fica encabulado.

– Ué, você nunca viu um homem nu, menino? – diz a senhora.

– Já vi, mas nesta situação não.

– Senta aí, puxa uma banqueta.

Ênio sentou, achando-se com cara de cretino, enquanto prosseguia o banho. Ali começou sua carreira de editor.

2

Anos depois, Lobato morre, e no seu enterro falam dois oradores, um stalinista, Rossini Camargo Guarnieri, e outro trotskista, Phebus Gikovate, cada qual reivindicando a honra de ter o famoso escritor como correligionário. Os dois se xingam, vão às vias de fato, e acabam rolando na cova aberta. A mulher de Lobato, dona Purezinha, não sabe se ri ou se chora. Ênio se diverte. Achou aquela cena “um negócio maravilhoso”, digno de um filme de Fellini.

3

Uma de suas prisões foi no dia do seu aniversário, 18 de novembro, quando estava recebendo os amigos em casa. Aparece um oficial do Exército, à paisana, para levá-lo preso. Ênio pede a sua mulher, Cleo, que diga aos amigos para continuarem tomando o seu uísque. Vai preparar a maleta e, quando volta, a camapainha toca. Era Antonio Callado. Ênio desconfia que vão querer levar também o amigo, e faz de conta que se trata de um convidado estrangeiro. Avisa assim o que está acontecendo:

– I’m being arrested this very moment. Take care.

Callado entra no jogo, respondendo em inglês, e depois vai embora.

No carro, a caminho da prisão, o oficial pergunta:

– Conhece o Antonio Callado?

– Sim, conheço, sou muito amigo e editor dele.

– Onde é que ele está? É que tenho ordem de prendê-lo também.

Ênio, então, informa que Callado está morando em Paris.

4

O editor da Civilização Brasileira vem andando pela rua México e topa com um sujeito que o abraça efusivamente. Leva um susto:

– O senhor está abraçando a pessoa certa?

– O senhor não é o editor da Civilização Brasileira?

– Sou eu mesmo. Mas não estou reconhecendo o senhor...

– Como pode ter se esquecido de mim? Eu o prendi. Sou um general. Sim, mas passado é passado.

– Mas por que o senhor me abraça?

– Pelo presente. O senhor tem toda razão. Isso que está aí é uma merda. Eles são uns malucos totais, estão fodendo o país, estamos mesmo perdidos.

5

Numa de suas prisões, Ênio se recusa a comer a gororoba que lhe trazem.

– Está fazendo greve de fome? – pergunta o oficial do dia.

– Não, senhor. Estou com uma fome desgraçada.

– Então por que não come? É exatamente a mesma comida que os praças comem.

– Mas eu tenho hábitos burgueses. Aprendi a comer com talheres, com a mão eu não como. Por que não trazem talheres?

– É porque aí alguém pode querer se matar.

Afinal, trazem uma colher de sopa.

Ele comenta: “Fazem muito esse tipo de coisa, para humilhar você”.

6

Confissão: “Sou editor que lê, porque editor brasileiro infelizmente – são poucas as exceções – não lê, tem uma profunda alergia ao conteúdo do livro. Eu sou um editor fanático, leio livros que estou com vontade de publicar e até livros de outras editoras. Sou um leitor. E não só isso: sou releitor. Releio Machado de Assis com muita frequência, porque o acho magnífico”.

7

Ainda sobre o livro, Ênio Silveira conta:

Às vezes faço uma coisa até bastante indelicada. Vou à casa de alguém e pergunto:

– Que livros você tem?

Essa pergunta é frequentemente respondida com um olhar de espanto. Livros? As pessoas não têm ideia do que é ter livros em casa. Dizem:

– Acho que minha mulher tem uns por aí...

terça-feira, 17 de abril de 2012

Conversa de Botequim nº 2


Abril de 1963. José Lewgoy estava em Roma, na boutique Battistone, na via Condotti, quando entra luminosa, esfuziante, Elizabeth Taylor, que na época fazia o maior sucesso na Itália, filmando “Cleópatra”.

Ela – a própria glória – pega tudo, examina tudo, compra tudo, não repara em ninguém, só enxerga a si mesma, refletida nos espelhos, nos olhares, nos desejos, nos desígnios.

Lá fora, ofuscadas, pessoas se juntam para vê-la, admirá-la e, se possível, garimpar-lhe um pé de galinha.

Negligenciado pela rainha e pela corte de vendedoras, José Lewgoy se retira do recinto.

Ao sair, topa com uma retardatária, nervosíssima, morta de curiosidade:

– Quem está aí? Quem está aí? – pergunta aflita.

– Elizabeth Taylor – responde o ator. “E José Lewgoy”.


Um belo dia, durante uma festa de casa grã-fina, o arquiteto Roberto Burle Marx exagerou no vinho e nos canapés.

Sentiu que não dava mais para manter o líquido dentro do estômago e partiu voando para o lavabo.

Abriu a porta já com a pasta aflorando na garganta e topou com uma senhora de costas, curvada, à cata de papel higiênico, traseiro exposto.

Não deu tempo. O esguicho grená foi direto na bundoca de madame.

Dona da bunda vomitada: Flor de Oro Trujillo.


O mineiro Edson Maciel nasceu numa família de músicos ou, mais exatamente, de trombonistas.

Seu pai e pelo menos dois de seus irmãos tocaram trombone, sendo que o mais velho, Edmundo, seguiu carreira e, em vários momentos, participou de gravações junto com Edson.

Foi nesse meio que se deu a iniciação musical de Edson Maciel, embora não haja informações sobre com que idade, com quem e o quê aprendeu, além do trombone.

A trilha da formação de Edson Maciel reaparece em meados da década de 1950, no Beco das Garrafas, no Rio de Janeiro, quando é citado constantemente como um dos principais músicos de sopro que ajudaram a criar a moderna música instrumental brasileira.

Junto a alguns dos maiores instrumentistas que o Brasil produziu, teve contato com o jazz e com a intensa disputa que caracteriza o convívio dos músicos de primeira linha.

Conheceu e tocou com diversos jazzistas que visitavam o Brasil e davam “canjas” no Beco, e pôde ouvir ao vivo Nat King Cole, Dizzy Gillespie, Bud Shank e outros que por aqui passaram.

Com arranjos de Tom Jobim, o disco Sergio Mendes e Bossa Rio foi um marco na MPB porque contava com uma gama de instrumentistas de alto quilate: Sérgio Mendes (piano), Edison Machado (bateria), Tião Neto (baixo), Aurino Ferreira (sax tenor), Edson Maciel (trombone de vara), Raul de Souza (trombone de válvula) e Hector Costita (sax tenor).

Maciel era um mulato sestroso, muito engraçado, cabeça meio pensa, que debochava de tudo e de todos.

Depois do sucesso do disco de Sergio Mendes, ficou mais abusado ainda.

Uma noite, o trombonista foi jantar num restaurante chiquérrimo, no Rio de Janeiro, provavelmente o Le Bec Fin (que a Ilka Soares chamava de Fim do Beco).

O maitre aproximou-se com o cardápio, ou melhor, com o menu. O Maciel perguntou:

- O que é que tem?

O maitre, suntuoso, imperial, vingando-se da Lei Afonso Arinos, responde com arrogância e desdém:

- Tudo, cavalheiro.

- Ah é? - comanda Maciel - então me traz rã com endívias, farofa de asa de morcego e suco de capim navalha com hortelã...

O maitre queria briga.


Domingo cedo, o jornalista e escritor Joel Silveira telefona para o arquiteto e escritor Marcos de Vasconcellos, quer companhia para o uísque.

- Não posso, Joel! -, responde o arquiteto. "Tenho um compromisso em Niterói."

Joel, com aquele exagero calmo que era direito seu, merecido, pois morreu na FEB, defendendo a pátria, como ele mesmo dizia, estranhou a viagem:

- Você? Domingo? Niterói? Não combina.

E contou:

- Uma ocasião, fui com o Rubem (Braga) a Petropólis num domingo e lá visitamos o Soares Sampaio, grand seigneur, elegantíssimo, superior. O Rubem, lá pelas tantas, quis dar um passeio pela cidade. Soares Sampaio soterrou-lhe a idéia com uma sentença histórica, proferida com majestade: deixemos o domingo à patuléia.

E concluiu:

- Nada de Niterói! Venha já pra cá!

O arquiteto foi.


Casa do músico Luiz Bonfá, um grupo pequeno de amigos foi escalado para o sabido prazer de conhecer e ouvir um dos grandes cantores americanos de jazz, Richie Havens, monstro sagrado de todos os grandes festivais do mundo.

Havens não se fez de rogado e cantou horas seguidas para uma turma embasbacada.

Detalhe: ele não tinha um único dente na boca deserta, tal como pode ser visto no filme Woodstock.

Uma das moças tomou coragem e, animada pela simplicidade do músico, perguntou por que ele não metia lá a terceira dentição.

Resposta de Richie Havens:

- Pra que? Não tô a fim de morder ninguém...

quinta-feira, 8 de março de 2012

Conversa de Botequim nº 1

Pergunta de Otário


O grande bandolinista Joel Nascimento é um tremendo gozador e inventor de expressões originais para o vocabulário. Aqui vão alguns exemplos marcantes:

– O meu vizinho se converteu e agora só escuta aquelas músicas chatas de crente. Virou “pentelhocostal”.

Sobrevoando a cidade de Rio Branco, no Acre, fez a seguinte observação:

– Olha lá, é uma cidade barroca, barro pra todo lado.

Os termos usuais da linguagem musical também ganham paródias. Pizzicato, por exemplo, ele chama de “pissiricato”. Trítono, de tripanossoma. Seu andamento predileto é o alegro ma non trepo. Quando o arranjo é metido a moderno, mas soa mal, ele não perdoa:

– Isso é música “dodecafona”.

Quando quer mais reverber no som de seu bandolim, Joel pede pro técnico:

– Bota um “ecuzinho” por favor.

Um dia, numa roda de choro frequentada basicamente por yuppies que não se sabe o que faziam ali, Joel sentou-se ao piano (instrumento que estudou na juventude) e começaram os pedidos. Toca Chopin, toca Nazareth.

Joel olhou sério para a audiência e anunciou:

– Eu vou “intertrepar” a Ave Maria, de Sunda.

A turma do choro foi rir no quintal, mas um rapazinho meio efeminado perguntou:

– Que Sunda?

Como se diz no botequim, otário e resfriado são duas coisas que não vão acabar nunca.


Seresteiro obtuso


Noel Rosa gostava das madrugadas e, quando não tinha carro, escalava motoristas de táxi para acompanha-lo no périplo noturno.

Um desses motoristas tinha o apelido de Malhado, em função do vitiligo. Possuía voz possante, que gostava de exibir em serenatas, e vivia pedindo a Noel uma música em que pudesse exibir seus dotes vocais.

Noel percebeu um detalhe interessante. Malhado cantava valsa e canções com palavras difíceis de que ele não conhecia o significado. Diante disso, resolveu compor uma canção para o amigo motorista.

Depois de pronta a composição, Noel ensinou versos e melodias para Malhado e combinou de fazerem a estreia da obra numa serenata para as filhas de um coronel lá de Vila Isabel.

Ao chegar diante do sobrado do coronel, Noel disse que ficaria do outro lado da rua, para dar o destaque que a voz de Malhado merecia. Feriu o tom e o cantor atacou:

“Saí da tu alcova
Com o prepúcio dolorido
Deixando teu clitóris gotejante
De volúpia emurchecido
Porém o gonococos da paixão
Aumentou minha tensão”

O coronel levantou atirando. Malhado correu para a esquina onde Noel já o esperava. Lívido, parou diante do Poeta da Vila, que o consolou:

– Isso é pra você ver, Malhado, o que é a falta de sensibilidade dessa gente.


O justo valor


Embora fosse uma definição realmente crua, essa história de palhaça de televisão não tinha tom pejorativo, explicava a ex-cantora Aracy de Almeida. Ela garantia que era sempre muito bem tratada pelo SBT. A emissora mandava semanalmente um funcionário para subornar o chefe do trem noturno que fazia a ligação Rio-São Paulo, a fim de que ela pudesse viajar com seus cachorrinhos preferidos.

Um dia apareceu no quadro de calouros – “Quanto Vale o Show” – uma moça para cantar um samba que fazia sucesso na época, do repertório da Alcione. A moça era mulata e usava uma calça de lycra amarela realçando sua bunda descomunal.

Após alguns erros e acertos, a caloura encerrou sua apresentação, e Sílvio Santos foi interpelando um a um do júri, até que chegou em Aracy.

– Aracy de Almeida, quanto vale o show?

Aracy ajeitou os óculos e fez sua avaliação:

– Minha filha, tu leva quinhentas prata, mas é pelo tamanho da jaca.


Quizila mal resolvida


A coisa mais fácil de acontecer entre pessoas de porre é um desentendimento. Qualquer motivo pode ser a causa da diáspora e as consequências só serão conhecidas no dia seguinte.

Foi assim com uma discussão entre a cantora Miúcha e o agitador cultural Albino Pinheiro. Os dois discutiram e chegaram a se estranhar, por causa de um assunto que no dia seguinte ninguém lembrava.

Ao acordar, cheia de arrependimento e culpa, Miúcha resolveu ligar para Albino e colocar tudo em pratos limpos. Aconteceu que Albino tinha ido à casa do grande Sivuca, para combinar o roteiro de um show da série Seis e Meia, e deixara o telefone de onde estaria para qualquer eventualidade.

Sem saber para onde estava ligando, Miúcha telefonou para a casa do Sivuca, sendo atendida pela esposa do instrumentista, a cantora e compositora Glorinha Gadelha. Miúcha foi logo perguntando:

– O Albino está?

Do outro lado da linha, Glorinha, ciosa de sua função de fiel escudeira do marido, não se conteve diante de tamanha falta de respeito:

– Olha aqui, albino é a puta que lhe pariu!

Miúcha custou a “cair a ficha”.


Romance truculento


Em meados dos anos 80, havia uma atriz-modelo-manequim que fazia de tudo para aparecer, incluindo até entrar nua em redação de grande jornal no Rio e em São Paulo. Um certo dia, a cantora e compositora Ângela Ro Ro cismou que queria ter um encontro com a tal moça e não poupou esforços. De imediato, ligou para o Cazuza, que era amigo da mocinha.

Cazuza não quis dizer onde estava a amiga e despertou a fúria de Ângela, que foi pessoalmente à casa de Miúcha – pois ele era amigo inseparável da Bebel Gilberto, filha da cantora – para arrancar informações. Chegando lá, tocou a campainha muitas vezes e, em seguida, começou a esmurrar a porta. Nesse momento, Miúcha entrou em desespero:

– Cazuza, você é o único homem nesta casa. Faz alguma coisa!

Todos tiveram um acesso de riso e ouviu-se um estrondo. Era a porta vindo abaixo.

Posto diante de Ângela, Cazuza, se tremendo todo, deu o serviço:

– Ela está na casa da Neuzinha Brizola.

Ângela deu meia-volta e saiu sem se despedir. Na casa da intérprete de Mintchura (será que alguém ainda se lembra?), Ângela foi recebida com sorrisos e retribuiu com um murro que nocauteou Neuzinha. Feito isso, pegou a moça pelo braço e deu o fora. Nem no tempo das cavernas houve assédio tão delicado.


(do livro Suíte Gargalhadas, de Henrique Cazes, publicado pela José Olympio Editora)